quinta-feira, 26 de maio de 2016

Super-homem, a canção: uma letra de Gilberto Gil com parte da essência da psicologia de Carl Jung

"Super-homem, a canção" sempre foi uma das minhas músicas prediletas compostas por Gilberto Gil. Desde o começo, a sua melodia suave me chamou atenção em meio às outras músicas do magnífico disco Realce: as mais badaladas e energéticas Toda menina baiana, Marina, Não chores mais, Realce e por que não Sarará miolo, a reflexiva Rebento, a descritiva (quase um registro histórico) Tradição, e Logunedé, uma louvação da cultura/religião brasileira de matriz africana, característica tão presente na obra de Gil. 
Capa do disco Realce de Gilberto Gil.
Com o passar do tempo, a sua melodia não me satisfazia, queria compreender a sua letra. No primeiro momento, imbuído dos preconceitos humanos, imaginei ser essa letra uma espécie revelação sexual. Pensava eu ser essa letra uma forma que o Gil usava para expressar algum traço homossexual, no seu real sentido. Procurei então o que o próprio Gil falava a respeito dessa música e me deparei com um depoimento em uma entrevista no canal GNT (referência 1) e uma explicação no site do compositor falando a respeito dessa música (referência 2). Sobre a inspiração para a letra, diz o próprio Gil (referência 2):

"De repente eu ouvi uma zuada: era Caetano chegando da rua, falando muito, entusiasmado. Tinha assistido o filme Super-homem. Falava na sala com as pessoas, entre elas a Dedé [Dedé Veloso, mulher de Caetano à época]; eu fiquei curioso e me juntei ao grupo. Caetano estava empolgado com aquele momento lindo do filme, em que a namorada do Super-homem morre no acidente de trem e ele volta o movimento de rotação da Terra para poder voltar o tempo para salvar a namorada. Com aquela capacidade extraordinária do Caetano de narrar um filme com todos os detalhes, você vê melhor o filme ouvindo a narrativa dele do que vendo o filme... Então eu vi o filme. Conversa vai, conversa vem, fomos dormir. 
"Mas eu não dormi. Estava impregnado da imagem do Superhomem fazendo a Terra voltar por causa da mulher. Com essa idéia fixa na cabeça, levantei, acendi a luz, peguei o violão, o caderno, e comecei. Uma hora depois a canção estava lá, completa."

É interessante ver que essa música tenha surgido a partir de uma inspiração do personagem Super-homem das histórias em quadrinhos. Sobre o suposto conteúdo de revelação sexual, Gil escreve (referência 2):

"Sobre a 'porção mulher' - Muita gente confundia essa música como apologia ao homossexualismo, e ela é o contrário. O que ela tem, de certa forma, é sem dúvida uma insinuação de androginia, um tema que me interessava muito na ocasião - me interessava revelar esse embricamento entre homem e mulher, o feminino como complementação do masculino e vice-versa, masculino e feminino como duas qualidades essenciais ao ser humano."

Nas linhas acima, claramente Gil tenta desmistificar a ideia de que essa letra constituiria uma espécie de apologia ao homossexualismo. Ela é algo mais. A porção mulher a que Gilberto Gil se refere pode ser encarada como a manifestação da "anima", um conceito elaborado pelo psicólogo Carl Jung. Segundo Jung, todo ser humano possui características psicológicas que remetem a ambos os sexos, uma dualidade bastante semelhante aos conceitos de Yin Yang do Taoismo. O homem teria uma parte interior feminina da sua psique chamada de anima. O equivalente feminino seria chamado então de animus. 
Carl Jung
De uma forma geral, os nossos traços de personalidade seriam derivados de uma ação maior ou menor do nosso componente psíquico de gênero oposto. As características da amina nos daria os traços associados ao papel feminino da mulher perante a história da humanidade, que em grande parte estaria relacionados ao cuidado dos filhos, do lar e à maior sensibilidade. O aminus estaria relacionado à virilidade e atitude conquistadora e aventureira (confesso que preciso aperfeiçoar o meu entendimento desses conceitos, mas do que li até hoje, essa dualidade proposta por Jung carrega um certo preconceito machista).    

Há de se esperar, dessa forma, que dotados dessa dualidade, busquemos o equilíbrio entre essas duas entidades psíquicas. No caso da música do Gil, entendo que o eu lírico vive uma situação de vislumbramento ao se dar conta da existência da amina e de como a sua vida melhora a partir da consciência da atuação desse componente psíquico.

Além de falar da amina, outro componente Jungiano presente na letra do Gil é o arquétipo do mito do heroi. Para Jung, esse é um arquétipo presente no inconsciente coletivo e a prova disso é a existência de inúmeras histórias, mitos, lendas contadas em diversas sociedades distintas e em eras igualmente diferentes que trazem uma mesma estrutura de enredo. É preciso, antes de mais nada, deixar claro, pelo menos em algumas linhas, do que se trata esse inconsciente coletivo. Para Jung, além do inconsciente pessoal (tal como o que foi descrito na Psicanálise Freudiana), nossa psique seria dotada do inconsciente coletivo. Esse inconsciente está carregado de arquétipos (ou imagens, símbolos, conceitos, modelos) armazenados pelo ser humano desde o início dos tempos. É como se cada indivíduo compartilhasse uma parte em comum da sua psique, referente às memórias do ser humano sujeitas ao processo de evolução, simplesmente como algo inerente à nossa espécie.

Dito isso, as semelhanças entre o mito do heroi em várias lendas, mitos, ou histórias em geral, desde Sansão (heroi bíblico) até o Super-homem (das histórias em quadrinho), demonstra como esse arquétipo está presente na nossa psique (especificamente no inconsciente coletivo).


Em "Super-homem, a canção", Gil descreve o mito do heroi e parte da sua significação quando escreve:
 

"Quem sabe o super-homem venha nos restituir a glória
Mudando como um Deus o curso da história
Por causa da mulher"

Nesses versos, Gil fala da ação do super-homem ao resgatar a donzela em perigo, como acontece no filme desse super-heroi. O ato de salvar a donzela simboliza, no mito do heroi, a libertação da amina como componente íntimo da psique (referência 3). Desse modo, poder-se-ia interpretar essa passagem da música da seguinte forma: o super-homem seria o nosso ego, capaz de restituir a totalidade do nosso ser, necessária para a nossa realização (ou para a nossa glória), ao libertar a nossa amina, ou aminus.

Poderia ainda dizer que se Gil não considerou essa visão psicológica Jungiana ao escrever essa letra, o fez baseando-se nos acima citados arquétipos presentes no seu próprio inconsciente, seja ele o pessoal ou o coletivo, o que reforça a teoria de Jung. 

Observação: queria deixar claro que não sou psicólogo, portanto, é possível que esse texto contenha alguns erros ou imprecisões nos conceitos psicológicos; o propósito 
deste texto é apenas o de apresentar uma tentativa de significação sob a luz da teoria de Jung.   






REFERÊNCIAS

1. http://gnt.globo.com/programas/papo-de-segunda/materias/gilberto-gil-conta-como-criou-musica-super-homem-inspirado-no-filme-de-1978.htm

2. http://www.gilbertogil.com.br/sec_musica.php?page=5

3.  JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. 2ª ed. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 2008.

3 comentários:

  1. Adorei a análise.A psicanálise avançou muito pouco no conhecimento da psique humana.

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    1. Obrigado Ademar. Concordo com você. Acredito que a psicanálise teve uma contribuição muito importante nesse sentido, porém tem muitas limitações.

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  2. Parece mais Lacan. Lacan diz que amar é dar o que não se tem; o que não se tem é aquilo que falta. A falta implica a condição de ser 'castrado'. O ser castrado é, segundo Freud, a mulher. Amar é reconhecer sua falta, doando-a ao outro. Dessa forma, só se ama verdadeiramente a partir de uma posição feminina, pois o amor nos fragiliza nos torna dependente e nos faz reconhecer uma falta que buscamos no outro, o ser amado. Sendo assim, quando o eu-lírico diz que a porção mulher que resguardara é a porção melhor que traz em si, refere-se à capacidade de amar que requer uma posição feminina. Para amar, o homem precisa se feminizar.

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